quinta-feira, 30 de julho de 2009

VAPOR DE CACHOEIRA

O texto abaixo foi extraído do site JANGADA BRASIL http://www.jangadabrasil.com.br e faz parte de "Folclore geo-histórico da Bahia e seu Recôncavo", de autoria de José Calazans, Júlio Braga e Maria Antonieta Tourinho.

O vapor de Cachoeira aparece, freqüentemente, no cancioneiro popular da Bahia. Nas cantigas de roda, nas rodas de samba, nos versos gerais. Dificilmente, na cidade do Salvador ou em qualquer parte do Recôncavo, encontramos alguém que não houvesse cantado a conhecida quadra:


O vapor de Cachoeira

Não navega mais no mar

Bota o remo, toca o buso

Nós queremos navegar


A popularíssima copla apenas encontra concorrente naquela tão cantada Eu fui no Tororó, que toda gente está sempre a dizer:


Eu fui no Tororó

Beber água e não achei

Encontrei bela morena

Que no Tororó deixei


Repartindo, no denominado folclore tópico, com a quadra supra, as preferências do povo, o tema vapor de Cachoeira ganhou, contudo, maior expansão, vindo a formar um autêntico e rico ciclo do nosso romanceiro regional. A constante Eu fui no Tororó, realmente muito recitada, não veio, em verdade, a se desenvolver em versos de sentido mais amplo de distintas modalidades e inspiração romântica. Ficou, apenas, numa única trova com meras substituições de certas palavras. Tal, porém, não sucedeu ao vapor de Cachoeira. A simples enumeração das diversas quadras do ciclo, arrumadas pelos respectivos temas, dar-nos-á uma idéia exata da sua projeção.


Inicialmente, a constante "não navega mais no mar".


O vapor de Cachoeira

Não navega mais no mar

Arriba o pano, toca o buso

Nós queremos navegar


O vapor de Cachoeira

Não navega mais no mar

Puxa vela, bota vela

Nós queremos vadiar


O vapor de Cachoeira

Não navega mais no mar

Tira a prancha, toca o buso

Nós queremos namorar


Na barca de Cachoeira

Ninguém pode navegar [1]


Em seguida, as composições-registro, se assim nos permitirem denominar:


Adeus, Feira de Santana

Adeus, Santana da Feira

Lá se vai Lucas embora

No vapor de Cachoeira [2]


Toca o bonde pra lá

Toca o bonde pra cá

No vapor de Cachoeira

Eu quero me embarcar


O vapor de Cachoeira

Encalhou, não pode andar

Vou comprar uma marinete [3]

Pra meu bem acarinhar


Finalmente, as trovas românticas ou chistosas:


Dou-lhe uma, dou-lhe duas

Dou-lhe três, pela terceira

Lá vai meu amor embora

No vapor de Cachoeira


Lá vai uma, lá vão duas

Lá vão três, pela primeira

Lá vai meu amor embora

No vapor de Cachoeira


Ouvi tropel de cavalo

Ouvi bater porteira

Eu vi meu amor ir embora

No vapor de Cachoeira


Alfinetes são ciúmes

Agulha, variedade

No vapor de Cachoeira

Embarcou minha saudade [4]


O vapor de Cachoeira

Apitou ao escurecer

O amor que vai e volta

Nunca dá para esquecer


O vapor de Cachoeira

Navega na preamar

O sonho de toda moça

É pensar que vai casar


O vapor de Cachoeira

Já passou sem apitar

Mulher que se fia em homem

Morre seca de chorar [5]


Tantas referências ao vapor de Cachoeira não são, evidentemente, obra do acaso ou necessidade de rima. O barco foi um acontecimento no início de sua atividade, e, no decorrer dos tempos, tornou-se alguma coisa de muito preciosa na paisagem cultural da Bahia e seu Recôncavo. A barca velha da linha de Cachoeira e a barca nova, como bem observou João da Silva Campos, estão presentes nas cantigas baianas pelo prestígio que desfrutaram no meio da nossa gente. O vapor de Cachoeira, que já deixou de navegar, talvez somente para fazer cumprir o vaticínio do povo, expresso na poesia anônima, foi um admirável instrumento de progresso nas águas da baía de Todos os Santos. Uniu, durante quase século e meio, a metrópole ao sertão.


Subindo às águas do Paraguaçu, a barca de vapor, sonhada e realizada por Felisberto Caldeira Brant Pontes, começou, em 1819, nova fase da história dos transportes da Bahia, quiçá no Brasil.O futuro visconde de Barbacena e seus sócios deram ao Recôncavo, ainda na primeira fase da era insdustrial, um dos novos elementos de progresso, que foi o barco a vapor. Com máquina adquirida na Inglaterra e barco construído na cidade de Salvador, homens progressistas da Capitania fizeram-no inaugurar, a 4 de outubro de 1819, com a presença do governador Conde da Palma, numa viagem inicial a Cachoeira. Grande evento na vida do Recôncavo, que haveria de exercer, mui naturalmente, extraordinária influência em toda a região.


Um navio que se movia sem a ajuda do vento ou a força das remadas. Natural, pois, que a primeira embarcação do tipo a se locomover na baía de Todos os Santos e no Paraguaçu despertasse interesse e formulasse novos juízos no pensamento do povo. Talvez, por isso mesmo, conforme hipótese sugerida por Silva Campos, o fato de haver encalhado, e, ao que parece, sido destruído o barco a vapor que primeiro apareceu em nosso meio, ganhou o episódio proporções que se projetaram em nosso folclore. A constante não navega mais no mar teria tido origem no encalhamento dos primeiros tempos do qual resultaria a perda do barco, popularmente conhecido por barca velha. Depois, nos fins da Regência, em novas bases, o transporte marítimo para Cachoeira passou a ser feito de modo regular e o vapor de Cachoeira, como ficou conhecido na linguagem popular, desfrutou grande importância na vida regional.


Aparecia constantemente no noticiário dos jornais, nas conversas cotidianas, e figurou em vários romances baianos. Marcos Pereira, fabulosa personagem do Dois metros e cinco de Cardoso de Oliveira, nele viajou para Cachoeira, quando de sua peregrinação pelos sertões da província [6]. No Feiticeiro de Xavier Marques encontramos que, vencido nas eleições, o doutor Amâncio aproveitou o vapor de Cachoeira para sair da cidade [7]. Herman Lima, em Garimpos, que é muito auto-biográfico, conta sua ida para Cachoeira, à procura da zona das Lavras, no vaporzinho Paraguaçu, numa viagem que achou terrivelmente monótona [8]. Também Clóvis Amorim, no seu Alambique, descreve uma viagem no vapor de Cachoeira [9]. E o autor de Jubiabá comenta: "… É um trem que parou. Naturalmente leva para Feira de Santana os passageiros do navio que chegou hoje em Cachoeira vindo da Bahia". [10]Tudo em verdade, no transcorrer de tantos anos, contribuiu para dar dimensões folclóricas ao vapor de Cachoeira, que conduzia gente e mercadorias da cidade maior para as cidades menores e vilas interioranas da Bahia. A presença do vapor famoso no populário baiano tem, sem dúvida alguma, profundas raízes geográficas e históricas.


---------------------------------Notas -------------------------------------------------------


[1]. CAMPOS, João da Silva. ‘O vapor de Cachoeira’. Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia. Bahia, 1930, nº 56, p. 523.

[2]. Com. por Elza Ribeiro Montalvão.

[3]. Marinete é denominação local de ônibus, por causa do poeta futurista Marinetti, nome ligado ao nosso folclore.

[4]. CAMPOS, João da Silva. Op. cit. p. 525.

[5]. Com. pela folclorista Hildegardes Viana.

[6]. OLIVEIRA, Cardoso de. Dois metros e cinco. Rio de Janeiro, Briguiet, 1936. p. 172.

[7]. MARQUES, Xavier. O feiticeiro. Rio de Janeiro, Liv. Ed. Leite Ribeiro, 1922. p. 130.

[8]. LIMA, Herman. Garimpo. Rio de Janeiro, Tecnoprint Gráfica S. A. 1967, p. 28.

[9]. AMORIM, Clóvis. O alambique. Rio de Janeiro, José Olímpio, 1934. p. 32 ss.

[10]. AMADO, Jorge. Jubiabá. 12ª ed. São Paulo, Martins, 1963. p. 184.


(SILVA, José Calasans Brandão da; BRAGA, Júlio Santana; TOURINHO, Maria Antonieta. Folclore geo-histórico da Bahia e seu recôncavo.)


Vocabulário :

Copla – Quadra; Pequena composição poética, geralmente em quadras, pra ser cantada.

Chistosas – Que tem chiste, engraçado, espirituoso.


Nota do editor : Texto extraído do site